Recordações de Sam
- Meus queridos filhos e filhas. – a voz fraca e cansada de Sam foi pronunciada com emoção. – Pedi para que apenas os meus descendentes, além dos meus irmãos Jacó e José, permanecessem um pouco mais aqui para... – parou para tossir um pouco e depois de forçar um pigarro continuou – Para que ouvissem minhas últimas palavras dirigidas a toda a família.
A cerimônia do funeral de Nefi terminou a cerca de uma hora. Praticamente todo o povo estava presente. Jacó, como Sumo-Sacerdote presidente, conduziu as homenagens e despedidas ao rei e profeta Nefi. O povo sentiu muito sua morte, pois o amava profundamente por ter sido seu grande protetor e por ter trabalhado todos os seus dias pelo seu bem-estar.
- Peço permissão a meu irmãozinho Jacó para eu poder falar a todos. – disse olhando Jacó nos olhos, dando uma risada marota. – Você é nosso profeta. Sou grato por isto e o respeito como tal, mas mesmo assim é meu pequeno irmão. Ainda me lembro como se fosse hoje quando você nasceu enquanto estávamos no deserto. Em meio a tantas provações você nos trouxe muitas alegrias.
Sam dirigiu-se até Jacó e José que estavam sentados bem à sua frente. Colocou as mãos nos ombros deles e, depois de beijá-los na face, disse com lágrimas escorrendo pelo rosto: - Eu amo vocês irmãozinhos.
Jacó levantou-se. Abraçou fortemente Sam e chorou prolongadamente. Em meio a soluços e com a voz embargada disse, afastando-o um pouco para poder olhar em seus olhos: - Eu também te amo muito meu irmão.
Todos os presentes, vendo aquela cena, choraram emocionados.
Apertando novamente Sam junto de si, Jacó sussurrou em seu ouvido: - Já tenho tanta saudade de Nefi. – e chorou profundamente por vários minutos. – Como poderei substituí-lo? Como meu irmão? Como? – e continuou chorando.
Uma doce brisa trouxe das planícies abaixo um agradável cheiro das flores da recém chegada primavera e, como uma onda, fez os longos e grisalhos cabelos de Sam balançarem. Enquanto Jacó via suas próprias lágrimas caírem como uma cachoeira dos invernos passados e molharem a verde vegetação a seus pés, ouviu seu irmão pronunciar palavras de conforto e amor.
- Você foi escolhido pelo Senhor e ungido pelo nosso irmão. Você é nosso profeta. O escolhido do Senhor. O povo precisa de você.- Com um gesto carinhoso Sam pediu: - Agora sente um pouco e escute as últimas palavras deste seu velho irmão.
A colina Leí era o local escolhido para o sepultamento da linhagem real. Nefi foi o primeiro rei e agora Nefi II reinava em seu lugar. Ali do alto a colina do templo era vista ao sul, do outro lado da planície. Um rio de águas cristalinas, abundante em peixes cortava a planície onde o povo de Nefi construiu a cidade. A oeste da colina do templo uma pequena floresta com robustas e altas árvores provia o povo com suas madeiras.
O forte azul do céu do início da primavera realçava o puro branco das nuvens que permeava o firmamento com suas formas diversas. O extenso verde da vegetação, que se perdia no horizonte em todas as direções, era salpicado pelas diversas cores de uma grande variedade de flores que desabrochavam preenchendo o ar com perfumes deliciosos. Abelhas e beija-flores saboreavam o doce gosto da primavera. A paisagem visual e olfativa era completada com os sons do canto dos pássaros. Toda a paisagem pareceu não combinar com os tristes sentimentos de uma família que se despediu de seu querido Nefi.
- Meus queridos. – continuou Sam após ver que Jacó havia sentado - Hoje foi um dia muito triste. Um dia que eu sabia que chegaria, mas o qual nunca estamos preparados. Hoje eu disse adeus a meu querido irmão Nefi. Sempre pensei que eu faleceria antes que ele por ser um pouco mais velho.
Sam estava curvado pela idade. Seus longos cabelos grisalhos desciam pelos ombros até sua túnica azul turquesa com detalhes dourados. A túnica, finamente tecida, caia pelos ombros até a altura do cotovelo. Amarrada na cintura por uma faixa larga vermelho sangue, ia até o tornozelo. Tanto as bordas das mangas, a orla inferior e a gola eram bordadas com fios dourados. Por toda a extensão do tecido, detalhes dourados de uma ave nativa era representada de forma esmerada. No pulso direito um bracelete de ouro refletia a luz dourada do sol da manhã.
- Com a partida de meu querido irmão, profeta e rei, fiquei a ponderar. – disse Sam e seu semblante adquiriu uma feição muito séria. Seu belo rosto, enrugado pelos anos, refletia a pureza de sua alma.
- Assim como ele, estou velho, e não tenho muito mais tempo nesta vida. Por isso resolvi me reunir hoje apenas com vocês aqui em cima e falar um pouco sobre minhas memórias. Nunca fui muito bom em registros e por isso acho prudente compartilhar com cada um. Também não sou de falar muito e talvez achem estranho tudo o que tenho a dizer.
Aproximadamente cinqüenta pessoas ouviam Sam naquela manhã. Filhos e filhas com suas esposas e esposos estavam presentes. Netos e netas ouviam atentamente, ou pelo menos tentavam, enquanto os bisnetos corriam pelos acentos se escondendo ou pulando para tentar pegar as borboletas que embelezavam o ambiente.
- Sinto a brisa fresca da manhã em meu rosto. – disse Sam com os olhos fechados – Isto me leva de volta à Jerusalém, quando éramos crianças e brincávamos muito pelas ruas. Eu e Nefi corríamos por cada canto da cidade. Eu conhecia muito bem Jerusalém e queria que meu irmãozinho também conhecesse. Assim eu o levava para cada esquina e rua. Lembro uma vez que eu me perdi, mas não queria deixar que ele soubesse, mas desde bem pequeno Nefi era incrível. Ele me puxou pela mão e disse: Estamos perdidos, não estamos?
Todos riram e Sam continuou: - Fiquei meio envergonhado e tive que admitir que estávamos perdidos sim. Com uma simplicidade ele disse: Vamos orar. O Senhor nos mostrará o caminho de volta. Oramos e rapidamente voltamos para casa.
- Naquela época não tínhamos muita relação com nossos irmãos mais velhos, Lamã e Lemuel. Éramos crianças querendo brincar e eles adolescentes, estavam indo atrás das garotas. Lembrando deles agora, sinto uma dor no coração pelo caminho escolhido por eles. Agora somos dois povos inimigos. E tivemos que batalhar com eles liderados pelo próprio Nefi, que empunhou a espada de Labão em nossa defesa.
Parou por um instante e cabisbaixo reparou nas formigas saúvas que, em fila disciplinada, levavam pedaços recortados das folhas da macieira até o formigueiro. A sombra da árvore protegia o idoso Sam dos raios solares. Entre as folhas, as maçãs cresciam nos galhos e a coloração vermelha do fruto despontava como o nascer do sol.
- Na época em que nosso pai Leí foi chamado como profeta, e teve que advertir Jerusalém sobre a possível destruição da cidade caso não se arrependessem, nós os filhos passamos por sérias dificuldades. Nossos amigos começaram a nos ridicularizar e insultar nosso pai. Ficamos muito tristes com tudo aquilo e o pior é quando víamos Lamã e Lemuel concordarem com aquelas pessoas. Nem mesmo podíamos transitar pelas ruas. Nefi já era bem maior que eu e certa vez quando um jovem atirou uma pedra em mim, me chamando filho de um louco, vi o quanto meu irmãozinho era poderoso. Ele pegou o rapaz pelo pescoço e torcendo o braço dele fez com que se desculpasse.
Todos ouviram com atenção as palavras de Sam, as quais foram transmitidas com uma voz mais vigorosa. Pareceu que o relato da juventude o fez ganhar um certo vigor.
- Nós quatro éramos freqüentadores assíduos da casa de Ismael. Adivinhem porquê? – o sorriso maroto novamente apareceu em seu rosto – Exato. Por causa das garotas. Ismael tinha várias filhas, e eu era apaixonado por uma delas. Ela era linda. Mais tarde nos casamos e constituímos esta grande família. – os olhos ficaram mareados de lágrimas e a voz falhou mais uma vez. – Sinto falta dela. Há quase dez anos ela passou para o outro lado do véu. Não vejo a hora de me unir a ela.
Uma águia nas alturas emitiu um som agudo e prolongado. Sua sombra passou por todos os que ouviam o relato de Sam, o qual olhou para cima e contemplou a beleza do vôo daquele belo pássaro.
- Nossa saída de Jerusalém foi algo bem doloroso para todos nós. Desde que nosso pai recebeu a ordem do Senhor para sairmos de lá, nossa vida nunca mais foi a mesma. Levamos o dia inteiro preparando nossas provisões para uma viagem sem volta. Éramos uma família bem abastada e deixar tudo aquilo foi difícil, mas nosso pai nos encorajou e nos liderou com sabedoria. No momento da partida fiquei muito triste em não poder me despedir da minha amada, não sabendo que a encontraria posteriormente. Lamã e Lemuel como sempre não colaboraram, mas no final acompanhou-nos. Nossas irmãzinhas estavam assustadas, mas nossa mãe sempre conseguia nos confortar a todos. Nosso pai nos ajudou muito a entender que não deveríamos colocar nossos corações nas coisas materiais. Deixamos para trás muitas riquezas. Saímos de madrugada para que ninguém nos visse.
- Depois de passarmos muitos anos no deserto, chegamos à beira mar. Foi muito bom estarmos na praia depois de tanto sofrimento. Nossos filhos adoraram, pois podiam se divertir no mar a cada dia. O agradável som das ondas e o aroma do mar nos revigorou grandemente.
- Me lembro muito bem disto. – disse José – Eu e Jacó corríamos de um lado para outro pela praia. Nadávamos muito também. Nossa mãe morria de medo que nos afogássemos.
O clima ficou descontraído a cada recordação que Sam trazia do passado.
- Quando Nefi nos informou que teríamos que construir um barco para poder atravessar o mar, ficamos todos espantados. Lamã e Lemuel foram os primeiros a reclamar e tentar dar um fim em Nefi. Mas tudo começou a acontecer. Passamos vários anos ali na praia, construindo o barco. Era um trabalho lento que exigia muita paciência. As dificuldades que tínhamos eram enormes, mas com a fé e empolgação de Nefi tudo pareceu fácil. Não tínhamos nada pronto. Foi preciso extrair minério de uma montanha para poder derretê-lo e fazer as ferramentas. Tínhamos madeira em abundância. Lembro quando derrubamos a primeira árvore. Depois que ela caiu tínhamos um novo desafio. Como transportar? Com as dificuldades, e principalmente com a ajuda do Senhor, criamos ferramentas e dispositivos novos que nos ajudaram em nossas necessidades específicas. Como disse, depois de anos conseguimos terminar o barco e nos lançamos ao mar. Uma aventura incrível. No começo da viagem, e até nos acostumarmos, muitos de nós ficaram enjoados. Mas passou. Por quase um ano estivemos nas grandes águas para chegar até esta maravilhosa e abençoada terra que vivemos hoje.
O discurso de Sam prosseguiu por muito mais tempo. Vários de seus descendentes fizeram inúmeras perguntas e Sam, por sua vez, contava com detalhes tudo o que aconteceu. A cada recordação um vigor extra fortalecia a sua velhice.
O sol se pôs a pino e, após o término do discurso e perguntas, todos desceram a colina. Sam permaneceu.
Sozinho, com o vento soprando em seu rosto, contemplou ao longe o lindo templo com suas pedras brancas. Um bando de aves passou por perto. Relembrando seus feitos, chegou à conclusão que sua vida foi muito boa. Tudo passou tão rápido e agora estava quase no fim.
Fechou os olhos e agradeceu pela vida. E ali ficou com suas recordações. As recordações de Sam.
Mossa, gostei muito. Sam foi o nemo escolhido por meu marido e eu para nosso filho. Ele muitas vezes nos indaga o porquê desse nome. Certamente vou ler esse conto pra ele tenha orgulho de ser Sam. Abraço
ResponderExcluirOi Simone, que bom que gostou. Obrigado.
ResponderExcluirAdorei o conto... amei o blog, parabéns já virei super fã e seguidora!!!
ResponderExcluirUm conto muito bonito. Parabens Marcelo
ResponderExcluirLindo meu amigo! Tens o dom de usar as palavras para encantar as pessoas. E, especificamente neste conto, esta magia me ajudou a estar presente! Obrigada!
ResponderExcluirElisabete, Gaspar e Sheila; Muito obrigado pelas palavras.
ResponderExcluirMarcelo,
ResponderExcluirQue conto bacana cara, Adorei mesmo!
Continue assim meu amigo! Continue a nos contar as histórias que atér imaginamos um dia mas não temos esse telento para contar.
Grande abraço,
Cristiano Marques.